sábado, 30 de julho de 2011

Título: É escondido que se mostra a dignidade.

Quem sempre quer vitória perde a glória de chorar – Marcelo Camelo
A ENTIBIA SE DÁ EM NÃO GRITAR AO MUNDO. Estive vivendo por uma hora e dez minutos com um homem que comprei quando ia passando na rua, tinha alguns com ele, emoldurados a mostra na calçada de uma esquina próximo onde hoje funciona uma clínica durante o dia, mas que antigamente era uma casa estilo clássica ou neoclássica, mas que perdera muito do seu garbo devido principalmente as paredes contendo colunas e janelas que foram derrubadas deixando o único vestígio que denuncia o crime, a fachada em cores berrantes que seus atuais donos despreocupados com história lhe pitara toda. Os homens estavam lá, dois sentados num troco grosso de arvore cortada enquanto os outros dois em pé ao longe de braços cruzados conversavam, sendo soltos assim como suas expressões sorridentes e olhos penetrando os vidros quando viram o carro se aproximar. Comprei como se comprava antigamente escravos africanos lindos nas feiras, retirados com o coração amargo e na alma deixada na terra mãe, à força vinham com mãos tinindo ferro e pé sujos no chão, vindos em porões de navios amaldiçoados por deuses que pela sede de muita vingança um dia afundou, arrancados de suas terras, sem esperanças, de seus lares ou na espera de construir um cá estão eles vivendo a modernidade, à espera de um comprador por necessidade econômica, pra sobreviverem, para manterem algo é que se dão de corpo sem alma, e é essa parte do corpo sem alma que me desgosta. Comprei desgostoso, mas comprei, comprei e percebi que fora da outra parte um bom negócio, o Garoto logo do banheiro me olhou e viu nu, espiou que eu era bem feito. Tinha músculos concisos, lisos, bons dentes, claros, olhos grandes, cheiro de sândalo francês. Diferente do que era acostumado.
E foi por se vender a mim do jeito que me apresentei que ele se sentiu mal de uma forma que habitualmente não se sentiria caso fosse um homem mais velho, talvez até se achasse fazendo um favor, e dormisse tranqüilo por cada prazer dado ao coito anal proporcionado filantropicamente, mas sentiu vim de sua mente exigências que soaram pelo ar em explicações sobre sua situação atual, porque afinal mesmo que não tivesse que ficar com um homem feio e velho, agora tinha que agüentar sentir o prestígio da aragem vinda daquele cara mais jovem, num carrão, vendo o comprador em um estado eterno de êxito. Me pareceu inconsciente que pra ele se sentir menos mal  contou-me entre mordidas e gemidos ter vivido um tempo na Suíça, não era um escravo qualquer, era um que tinha valor, um que tinha andado no estrangeiro, que sabia como as coisas eram no velho continente, algo a mais pra dá, afinal escutara sem entender a outra língua, aprendera no tempo alguma expressão, mas há tanto tempo sem treinar hoje já esqueceu como dizer adeus em alemão, comera o verdadeiro chocolate suíço, vira de perto as lojas com relógios, água da fonte, as fábricas no alto, ao topo do mundo e ao frio cortante que sem costume respirou ou pela doença pulmonar adquirida em Fortaleza o fez muito doente nas montanhas tendo de retornar a terra do sol e sentir os ares aquecidos perpetrarem os pulmões e na noite como essa, muito fria, prestes a chover, rezar ao Deus para que mais homens como eu lhe venha solicitar negócios. Esse homem cujo nome não fora perguntado e a identidade ficara anulada pela discrição do outro, o comprador, aquém convém passar pela rua de pouca luz sem deixar pegadas no asfalto negro, como se flutuasse emplumado, cujo demônio da consciência virá depois reviver pretéritos caminhos contados em minutos num relógio de celular que antecederam o gozo fraco na cama redonda do motel, ali mesmo no centro de madrugada, frio.

Que consciência tem o comprador? Ele que pertence a uma instituição que estaleja respeito, honra, moral também sabe por a cabeça ao solo e sentir o cheiro das solas empoeiradas por quem diariamente passam milhares de gente todos os dias, escondido a essa hora da noite, ele sabe mostrar a dignidade de corpo e alma a um desconhecido, retirar a roupa e sentir um cheiro forte e pesado que a vaidade presente não suporta e a insônia fica, mesmo durante a experimentação, como se tivesse imune ou energizado pela carência a qual some depois do gozo, quem sabe, mas o cheiro lhe entibia mesmo em casa horas depois, dias depois, semanas.

Lamber as bolas do escravo torna-se melhor que ficar durante todo o restante da noite e semanas com o sabor de uma pergunta na boca. O que teria acontecido se eu tivesse saído de casa hoje?

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